Os dois anjos de Marilda

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Por Fernanda Villas Bôas

Conheço Drummond desde a infância. Nas minhas mãos, caíram quase todas as edições de “Para Gostar de Ler”, as deliciosas antologias da Editora Ática, que reuniam, num único balaio, Drummond, Fernando Sabino, Rubem Braga e o magnífico (e ainda menos reconhecido do que deveria) Paulo Mendes Campos.
Drummond foi quem ajudou a notabilizar a nova crônica como gênero no Brasil dos anos 30, embora essa modalidade tenha se popularizado com a transformação do jornal no que ele viria a se tornar: um documento do cotidiano.
A crônica serviu para sacramentar o olhar de prosadores da vida urbana. Vida, muitas vezes, confusa, quase sempre caótica, mas continuamente passível de uma espécie de consagração do encontro.
Se, há 180 anos, a crônica revelava um caráter argumentativo, tornou-se mais ligeira, leve e divertida. Virou uma pequena literatura que flerta com o significado da poesia e é irresistível para leitores inveterados como eu.

Cronista, poeta e contista – Conheci Drummond cronista na infância. Depois, me aproximei do poeta e descobri o contista. Me apaixonei por todos. Uma vez, em Marília, fui a uma exposição e pude ler suas reportagens – sim, ele também trabalhou como repórter de jornal.
Hoje, trago Drummond contista num livro cheio de encanto: “Contos Plausíveis” (Record, 2002). São contos engraçados, absurdos, líricos, que tratam de relações íntimas, desejos inconfessos, uma verdadeira cruzada humana em busca do sonho e da vida reinventada, como bem recomendou Cecília Meireles. Há o moço que vira pombo; há espelhos falantes; há baleias que telefonam para o ministério da pesca. Também há o homem de duas sombras; e há o dia em que choveu leite.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o escritor que gostava de comer chocolate e de folhear livros ilustrados, cria pequenas histórias de fantasia e de arrebatamento. Toca nossa alma naquele ponto mais fundo. E permanece lá.

EXCESSO DE COMPANHIA (Carlos Drummond de Andrade)

Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

― Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.


Imagem que ilustra esse post: Carlos Drummmond de Andrade. Uma vez lhe perguntaram: “- Em que você se baseia para escrever suas histórias?”. E ele respondeu assim: “- Nas coisas que imagino”.

2 comentários sobre “Os dois anjos de Marilda

  1. Lembro-me bem destas antologias da Editora Ática, um verdadeiro presente, junto ao qual eu ponho a excelente coleção sobre MPB, publicada quinzenalmente pela Abril, vendida nas bancas. Que beleza era ir à banca para comprar um exemplar de um daqueles dicos cuja capa com fundo preto atraía bastante, discos com uma amostra da obra do Caymmi, ou do Jobim, ou do Baden Powell, Ataulfo Alves ou Noel Rosa, etc, com fotos e biografia, ou seja, um trabalhão danado, mas um amor ainda maior, para se editar tais coletâneas. Tenho ainda alguns discos desta coleção, bem como da coleção idealizada e editada pelo falecido Marcus Pereira, também sobre MPB.

    Um abraço. Bela postagem a sua.
    Darlan M Cunha

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